sexta-feira, 12 de março de 2010

A ENFERMEIRA


Ermengarda era enfermeira. Vivia bem com a sua consciência. Limpava feridas e lágrimas de criança. Ermengarda era feliz. Adorava crianças. Àquela mulher que lhe chegou naquele dia, esventrada, infectada, em sofrimento físico atroz, admoestou baixinho: não devia ter feito isso, minha querida. E a criança? Já pensou como seria a criança? A mulher nem piou, mas manteve-se calada, como se estivesse cravado no seu útero deformado a paga do seu utilitarismo.
Ermengarda apaixonou-se por um médico. Alto, ambicioso, lustroso nos brancos dentes, como os cavalos. À terceira noite e ao quadragésimo dia de amor, um feto crescia-lhe na barriga. A felicidade irradiava no sorriso de Ermengarda. Ao quinquagésimo dia a felicidade de Ermengarda, no entanto, esfumou-se como o dia se fez noite. O que foi, Ermengarda? Ele traiu-me, bem ali na Marquesa, para a frente e para trás como um cão, com a minha colega, a minha melhor amiga!
A cabeça de Ermengarda começou a esvoaçar e a andar à roda. Ao sexagésimo dia estava o lustroso, imaculado na sua bata branca, em plena dissecação do apêndice de uma pobre alma. Ermengarda frustrada, zangada, traída, entre macas, espetou-lhe um bisturi entre as pernas, como se a querer levar à cozedura os túbaros do porco.
Suspensa, irradiada, apelidada de louca, de puta, ingrata do pobre e santo doutor, Ermengarda em sofrimento acerca-se do local. Lúgubre, pastoso, rameloso, raspam-lhe o útero como o cozinheiro que se entretêm a raspar no botequim o pitéu dos túbaros do porco. Esventrada, delapidada, esvaziada e dormente, Ermengarda regressa a casa. No seu leito, dorida, lança durante o sono um grito de morte: morreu-lhe o amor dos seus sonhos e o amor do seu peito. Demasiado para uma pobre mulher, demasiado para todas as frases feitas e intolerâncias que povoam o mundo. Televisão aberta, a locutora locuciona, insustentável, intocada, com a leveza deste mundo: uma em cada ... mulheres morre de complicações devidas a aborto… enquanto agitada e febril, Ermengarda, a putativa mãe de um putativo brilhante mundo novo responde, no sonho, com um sorriso entre o anestesiado e o desprezo, a um inquérito: é contra ou a favor do aborto? Sou pelos dois!

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