quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

SERMÃO DE JPP AOS PEIXES!


Podemo-nos irritar com JPP pelo seu enorme snobismo, pela sua recusa à normal vulgaridade, não nos podemos é irritar com JPP é com o seu amor ao Padre António Vieira, porque chega de sermos peixes nesta poça inquinada e barrenta que dá pelo nome de Portugal!

«O texto de Santo Agostinho fala geralmente de
todos os reinos, em que são ordinárias semelhantes opressões e injustiças, e diz
que, entre os tais reinos e as covas dos ladrões — a que o santo chama
latrocínios — só há uma diferença. E qual é? Que os reinos são latrocínios, ou
ladroeiras grandes, e os latrocínios, ou ladroeiras, são reinos pequenos:
Sublata justitia, quid sunt regna, nisi magna latrocinia? Quia et latrocinia
quid sunt, nisi parva regna? É o que disse o outro pirata a Alexandre Magno.
Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia,
e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os
pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém, ele,
que não era medroso nem lerdo, respondeu assim. — Basta, senhor, que eu, porque
roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois
imperador? — Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o
roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas
Séneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a
uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco pone latronem et piratam, quo
regem animum latronis et piratae habentem. Se o Rei de Macedónia, ou qualquer
outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, o ladrão, o pirata e o rei, todos
têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.
Ponhamos o exemplo da culpa, onde a não pode
haver. Pôs Deus a Adão no Paraíso, com jurisdição e poder sobre todos os
viventes, e com senhorio absoluto de todas as coisas criadas, excepta somente
uma árvore. Faltavam-lhe poucas letras a Adão para ladrão, e ao fruto para furto
não lhe faltava nenhuma. Enfim, ele e sua mulher — que muitas vezes são as
terceiras — aquela só coisa que havia no mundo que não fosse sua, essa roubaram.
Já temos a Adão eleito, já o temos com ofício, já o temos ladrão. E quem foi o
que pagou o furto? Caso sobre todos admirável! Pagou o furto quem elegeu e quem
deu o ofício ao ladrão. Quem elegeu e quem deu o ofício a Adão foi Deus: e Deus
foi o que pagou o furto tanto à sua custa, como sabemos. O mesmo Deus o disse
assim, referindo o muito que lhe custara a satisfação do furto e dos danos dele:
Quae non rapui, tunc exolvebam . Vistes o corpo humano de que me vesti, sendo
Deus; vistes o muito que padeci, vistes o sangue que derramei, vistes a morte a
que fui condenado, entre ladrões. Pois, então, e com tudo isso, pagava o que não
furtei. Adão foi o que furtou, e eu o que paguei: Quae non rapui, tunc
exolvebam.
Mas estou vendo que com este mesmo exemplo de
Deus se desculpam ou podem desculpar os reis, porque, se a Deus lhe sucedeu tão
mal com Adão, conhecendo muito bem Deus o que ele havia de ser, que muito é que
suceda o mesmo aos reis, com os homens que elegem para os ofícios, se eles não
sabem nem podem saber o que depois farão? A desculpa é aparente, mas tão falsa
como mal fundada, porque Deus não faz eleição dos homens pelo que sabe que hão
de ser, senão pelo que de presente são. Bem sabia Cristo que Judas havia de ser
ladrão; mas quando o elegeu para o ofício em que o foi, não só não era ladrão,
mas muito digno de se lhe fiar o cuidado de guardar e distribuir as esmolas dos
pobres. Elejam assim os reis as pessoas, e provejam assim os ofícios, e Deus os
desobrigará nesta parte da restituição. Porém as eleições e provimentos que se
usam não se fazem assim. Querem saber os reis se os que provêem nos ofícios são
ladrões ou não? Observem a regra de Cristo: Qui non intrat per ostium, fur est
et latro . A porta por onde legitimamente se entra ao ofício, é só o
merecimento. E todo o que não entra pela porta, não só diz Cristo que é ladrão,
senão ladrão e ladrão: Fur est latro. E por que é duas vezes ladrão? Uma vez
porque furta o ofício, e outra vez porque há de furtar com ele. O que entra pela
porta poderá vir a ser ladrão, mas os que não entram por ela já o são. Uns
entram pelo parentesco, outros pela amizade, outros pela valia, outros pelo
suborno, e todos pela negociação. E quem negocia não há mister outra prova: já
se sabe que não vai a perder. Agora será ladrão oculto, mas depois ladrão
descoberto, que essa é, como diz S. Jerônimo, a diferença de fur a
latro.
Suponho finalmente que os ladrões de que falo
não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a
este género de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu
pecado, como diz Salomão: Non grandis est culpa, cum quis furatus fuerit:
furatur enim ut esurientem impleat animam.O ladrão que furta para comer, não
vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são
outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do
mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno: Non
est intelligendum fures esse solum bursarum incisores, vel latrocinantes in
balneis; sed et qui duces legionum statuti, vel qui commisso sibi regimine
civitatum, aut gentium, hoc quidem furtim tollunt, hoc vero vi et publice
exigunt: Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os
que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e
dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os
exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das
cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. — Os
outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam
debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são
enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista
que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça
levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: — Lá vão os ladrões grandes
a enforcar os pequenos. — Ditosa Grécia, que tinha tal pregador!»

É bom revisitarmos e recordarmos o Padre António Vieira, para nos pormos em dia com o nosso passado e vermos aonde e como perdemos a nossa dignidade como povo!

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