Podemo-nos irritar às vezes com ele, mas esta peça de J.P.P. peca apenas pelo brilhantismo do futurismo-quasepresente, e pelo sabor que se nos entranha, e que não nos estranha, por todos os sentidos!
«EXERCÍCIO DE FUTURO PRÓXIMO COM BASE NA LEI DE MURPHY
No final de 2009, ou no início de 2010, toma posse o Governo X que resultou de eleições legislativas meses antes. Um longo processo de formação do governo explica-se pelo facto de se tratar de um governo minoritário, que pode apenas contar com uma maioria parlamentar que resulta de um acordo político precário, com franjas políticas instáveis, obtido a muito custo com intervenção directa do Presidente da República em nome do "interesse nacional". É uma espécie de "governo de salvação nacional" sem que ninguém o sinta com legitimidade para tal, que resultou de uma campanha eleitoral muito radicalizada, envolvendo sérias suspeitas sobre o primeiro-ministro anterior que a conclusão precipitada de um inquérito judicial foi incapaz de dissipar. O grau de confiança dos portugueses nos políticos e em instituições como a justiça está nos seus mínimos históricos e ninguém acredita em ninguém.
À esquerda e à direita, cresce a extrema-esquerda e a extrema-direita, uma com expressão eleitoral e a outra com expressão nas ruas, nas conversas, nos fora das rádios e da televisão, no sebastianismo, no populismo grosseiro que também teve tradução nas eleições locais. A dimensão nacional da política quase desapareceu a favor de uma política de proximidade que favorece o mediatismo espectacular e o populismo das soluções fáceis. O discurso do inimigo, do "outro", tornou-se o caldo de cultura da vida política. Cabalas, "forças ocultas", conspirações e excomunhões surgem por todo o lado. A comunicação social enche-se de ajustes de contas por interposta fuga de informações, como se tudo na vida pública fosse uma competição de corrupções. Volta a falar-se de ditadura e de golpes militares.
A rua mergulha também na exclusão do "outro" à medida que a criminalidade violenta e a incapacidade dos governantes em lidar com a insegurança crescente se soma aos crimes "sociais". O emigrante "criminoso", o "preto", os bandos "violentos", os "ricos", os "corruptos", os "políticos" recebem tantos insultos e condenações quantas vezes se respira o ar miasmático das terras de desempregados, de velhos reformados sem futuro, de mulheres que voltaram para casa da fábrica, de jovens sem destino e com tempo a mais.
O Governo X encontra uma situação económica, financeira e social sem paralelo na vida do país a não ser na crise do pós-guerra, pós-1918, quando havia assaltos a mercearias, tumultos nas ruas, tentativas de golpes, uma guerra civil larvar entre monárquicos e republicanos, republicanos e sindicalistas, e a violência política era a regra. Centenas de milhares de trabalhadores estão no desemprego e já passaram a data-limite para receberem o subsídio a que tinham direito. Em múltiplas localidades do Norte e do interior, nos subúrbios industriais das grandes cidades, em todos os sítios do país onde tinha sobrevivido um tecido industrial, os edifícios das fábricas fechadas sucedem-se a outras fábricas fechadas. Já ninguém repara nos cartazes antigos contra o desemprego, nos apelos a greves e manifestações, nas pichagens nos muros exteriores. O trânsito nessas estradas que, no passado, conhecera engarrafamentos de camiões TIR, com contentores, furgonetas, carrinhas de serviços e autocarros com o "pessoal", desapareceu. Numa ou noutra grande instalação que fora industrial os pavilhões servem apenas de armazém. Ocasionalmente, passa um camião com sucata, uma grua, uma camioneta com garrafas de ar comprimido, uns materiais de obras, mas a actividade industrial quase parou.
Nos blocos de habitação barata, nas urbanizações suburbanas que acolherem a mão-de-obra industrial que acompanhara a abertura das fábricas, os anúncios de "vende-se" proliferam, por iniciativa dos bancos a quem as prestações da casa deixaram de ser pagas. A degradação dos prédios acentua--se, porque há muito tempo que os condomínios deixaram de funcionar, e nenhum condómino tem dinheiro para reparar os elevadores. Cafés e lojas no andar térreo fecham e abrem, dando sempre origem a um negócio menos qualificado, a montras com produtos cada vez mais baratos. Algumas viraram "lojas de chineses", mas mesmo esse manancial de consumo baratíssimo parece ter--se estancado. O pequeno comércio antigo, que já subsistia com muita dificuldade, está todo a fechar. Os vidros sujos de muitas lojas permitem ver a correspondência que ninguém recolhe no chão cheia de pó e humidade. Nas cartas enrugadas e sujas proliferam as intimações fiscais.
O Governo X encontra-se com uma emergência social. Herdou uma situação incomportável e que não pode em nenhuma circunstância continuar: milhares de salários em várias indústrias estavam a ser pagos pelo Governo anterior com o disfarce de "formação", por períodos que coincidiam com o ano eleitoral. Não há nenhuma possibilidade de o continuar a fazer no estado em que estão as contas públicas. O país tem uma dívida-recorde e cada vez maior dificuldade em financiar-se no exterior. A receita fiscal cai a pique à medida que a actividade económica pára e nem listas negras de contribuintes, nem os cadernos de vendas de imóveis e carros por execuções fiscais impedem milhares de não pagarem os impostos. Uns porque fogem ao fisco, muitos porque não têm dinheiro para pagar.
Para o Governo X não há muitas soluções para além de um programa muito severo de austeridade, com um aumento drástico de impostos, e uma redução acentuada do nível de vida. Uma geração inteira que nunca conheceu senão sucessivos "apertares de cintos" com a promessa da "luz ao fundo do túnel", com "sacrifícios" exigidos com a contrapartida de benefícios futuros já percebeu, com revolta ou passividade, que no fim pressuposto do ciclo dos "sacrifícios" não há senão outros sacrifícios. O empobrecimento das famílias atinge toda a gente da classe média para baixo e apenas os funcionários públicos, a quem o Estado garantia o emprego, não sentiam os aspectos mais duros da crise. No entanto, todos desconfiavam que essa situação iria mudar, mesmo para quem se pensava protegido, porque o Governo anterior tinha comprometido milhões e milhões de euros e prometido muitos mais, sem que se visse qualquer resultado na economia. E agora não havia dinheiro, nem para manter o Estado.
A radicalização política do partido no anterior Governo, impulsionada por um primeiro-ministro acossado e arrogante, impedira qualquer viragem política, porque este "não queria perder a face". Políticas erradas e ineficazes, em vez de serem corrigidas, eram premiadas com mais e mais dinheiro, numa tentativa de as salvar pela overdose. O Governo tornara-se errático e orientava-se pelas estrelas. O dinheiro fluía para um vazio, enriquecia quem não devia, salvava o património de quem não devia e desbaratava o erário público sem qualquer efeito útil. O período que precedera as eleições que dera origem ao Governo X tinha sido de um desperdício eleitoral sem paralelo, a pretexto da "crise", que o primeiro-ministro cessante tinha prometido não chegar. Na fase final do seu mandato, o mesmo primeiro-ministro tinha inflamado o espaço público com frases incendiárias contra os "ricos" e promessas sobre promessas e inúteis novas divisões, num país que já tinha tantas. Quem veio a seguir encontrava tudo minado e as sementes de violência plantadas cada vez mais fundo.
No dia da posse do Governo X, toda a esperança estava perdida. Tudo o que podia ter corrido mal correra mal.
(Versão do Público, 14/2/2009.) - J. Pacheco Pereira»
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