«O candidato Defensor Moura fez saber que concorre contra os portugueses que toleram a cunha. Repare-se que o candidato não concorre contra quem se socorre da cunha. Seriam apenas setenta por cento dos portugueses, o que ainda lhe deixaria trinta por cento para conquistar. É contra os que a toleram, o que representará, mais coisa menos coisa, 99 por cento dos nossos concidadãos.
O tema é bom. Mas só vale a pena se não nos ficarmos por declarações morais. A cunha é forma de fazer as coisas quando o rigor nos procedimentos não é a norma. Está a meio caminho para a corrupção, sem o ser ainda. Um país que se orgulha da sua capacidade de desenrasque não se pode envergonhar da cunha. Ela corresponde, nas decisões, ao improviso geral.
Deixo-vos aqui uma história pessoal. Uma banalidade. Há muitos anos, depois de ter feito, como editor, um programa de televisão, fiquei temporariamente sem emprego. E como me orgulho de nunca ter recorrido à cunha na minha vida profissional, fiz o que achava normal fazer-se quando se está desempregado: enviei para os jornais o meu currículo e um portefólio com os meus principais trabalhos. Rapidamente vários colegas levaram as mãos à cabeça. Não é assim que as coisas se fazem, disseram-me. Aquilo rebaixava-me. Dava ar de desesperado. Já tinha uns anos de jornalismo e devia, disseram-me, fazer saber de forma informal que estava disponível (desempregado nunca) e esperar ser convidado.
Sinceramente, não percebi muito bem o drama. Mas foram tantos os avisos que parei. E, de facto, umas semanas depois fui convidado para trabalhar num jornal. Insisti: antes de discutir as condições e o meu salário queria que soubessem mais de mim. Enviei o tal portefólio. Quando cheguei à entrevista para se acertarem as coisas percebi que já havia boa impressão. Fiquei, claro, satisfeito. Só que a conversa continuou e rapidamente compreendi que quem me estava a contratar nem tinha olhado para o que eu tinha enviado. Na realidade, nada sabia sobre mim de forma direta. Uma colega tinha dado boas indicações. E isso é que contava. Dava-se o caso da colega em causa, fiquei a saber, ser minha amiga. Claro que só diria coisas boas a meu respeito. E foi assim que comecei a trabalhar numa empresa onde quem me contratou mais não tinha sobre mim do que umas frases abonatórias. Isto apesar de ter tentado que as coisas fossem fritas de forma diferente.
A cunha - porque por mais voltas que se dê foi disso que se tratou - não foi tolerada nem procurada. Era apenas a forma das coisas funcionarem. Porque ler centenas de curriculos e de trabalhos, fazer dezenas de entrevistas e ir acompanhando, diariamente, o que colegas fazem noutras empresas, dá imenso trabalho. Porque avaliar as pessoas por o que elas fazem e não por o que se diz delas exige método, rigor e tempo.
A cunha não resulta de uma propensão nacional para a aldrabice. É a informalidade de quem não se organiza. E, num país pequeno onde toda a gente se conhece, a cunha é a forma das redes de contactos valerem mais do que o esforço e a competência. Ela tem efeitos na qualidade do que se faz ou na justiça das decisões que se tomam. Mas ela é, acima de tudo, um travão à mobilidade social. Quem está mais longe do poder não consegue empregos, é mais facilmente vítima de arbitrariedades, passa por calvários burocráticos a que outros são poupados. Basta olhar para os quadros das principais empresas, para os apelidos que se repetem e para a pequenez da nossa elite para perceber como essa rede informal é eficaz. E nas decisões administrativas passa-se o mesmo: se as regras não são claras e previsíveis e quem toma decisões não é rigoroso a aplicá-las a cunha subsitui a justiça. E é inevitável que assim aconteça.
Não basta não tolerar a cunha. Podemos e devemos continuar a fazer as coisas como se ela não existisse. Mas não chega, porque ela acaba sempre por se impor. A cultura do rigor nos procedimentos de quem tem de tomar decisões - políticas, administrativas ou empresariais -, seja no Estado ou no setor privado, é a única arma eficaz contra a informalidade das redes de contactos.
Para não me ficar pela critica, vale a pena dar um bom exemplo. Recentemente, a Câmara Municipal de Lisboa abriu um concurso público para o diretor artístico do teatro São Luiz. Várias pessoas, com excelentes currículos, concorreram ao lugar. Houve um júri que escolheu. Não interessa se se concorda ou discorda da decisão tomada. Interessa que aquele gesto - assim como todas as formas rigorosas de recrutamento de pessoal para uma empresa -, fez mais pela competência e pela justiça do que mil discursos éticos de combate à cunha. Uma pessoa que foi escolhida assim tem uma autoridade diferente. E será, ela própria, muito menos permeável ao "diz que disse" sobre a qualidade alheia ou à "atençãozinha para desbloquear uma situação".
Não basta condenar a cunha. Temos de nos bater pelo formalismo. Começando onde tudo tem de começar: como se contrata quem tem de tomar decisões. Curiosamente, sendo os políticos dos poucos profissionais sem qualquer fuga possível do concurso público - as eleições -, deveria ser muito fácil vir deles o exemplo. Infelizmente, como sabemos, não é assim. E, mais uma vez, a culpa só pode ser de quem os contratou. Ou seja, nós. Se os "contratamos" porque os achamos simpáticos ou boas pessoas, e não por o que defendem e por o que fizeram, como podemos esperar que sejam melhores do que nós?»