quinta-feira, 7 de outubro de 2010

PONTO CONTRAPONTO

  1. Caro VB
    Sempre pensei que a cidadania só existe quando somos chamados a pagar por ela. De outro modo a indiferença dos “da margem”, não tolhe as múltiplas aleivosias. A ciência económica desenraizada do palco social…não existe! São apenas inferências de algumas séries regulares que não se reproduzem igualmente em palcos com outros actores. Como diz César das Neves, o que importa são as margens.
    Esta notícia dá uma cinzenta imagem do Portugal de hoje:
    «Mais de metade das famílias não paga IRS
    Crise económica que assolou Portugal faz com que menos contribuintes tenham IRS liquidado. Dezenas de milhares deixam de pagar imposto porque não têm rendimentos
    O fisco lançou um novo alerta: mais de metade dos contribuintes com rendimentos declarados não paga IRS. Uma tendência que, de acordo com os fiscalistas, deverá acentuar-se nos próximos tempos.
    Do «bolo» superior a 4,6 milhões de agregados com rendimento bruto declarado, em 2008, mais de 2,5 milhões não apresentam IRS liquidado. São mais 143 mil que não apresentam rendimentos suficientes para serem tributados, avança este sábado o «Diário Económico».
    «Do total dos agregados com rendimento bruto declarado em 2008, cerca de 55% não têm IRS liquidado (2,5 milhões)», de acordo com os dados das Finanças. Em 2007, eram 2,4 milhões as famílias nesta situação (53%).
    Em causa está o facto de não terem rendimentos superiores a 7.980 euros, considerado o mínimo de existência a partir do qual se é tributado.»
    Um Portugal sem cidadania é assim um Portugal marginal.
    E sem a crença do retorno à ética, garanto-lhe que as intenções do apelo à “boa economia” ficarão sempre pelo caminho.
  2. VBa 02 Out 2010 as 14:43
    Caro causavossa,
    A economia normativa, i.e. a da escolhas, não é boa nem má economia. É um exercício de preferências e, por isso mesmo, não é ciência, é política. Pela mesma razão, não é campo de acção de economistas, mas de políticos (mesmo que formados em Economia).
    O papel da Economia, enquanto ciência (positiva), é o de informar das consequências mais prováveis das escolhas efectuadas ou a efectuar. Até como instrumento fundamental para permitir escolhas informadas. E este, sim, é o papel dos economistas. E aqui também não há boa nem má economia: há “economia” certa ou errada. E é precisamente neste campo que muitos que frequentaram os cursos de Economia - alguns mesmo doutorados (e catedráticos) em Vulgaridades Económicas - não aprenderam nada. E/ou então são intelectualmente desonestos.
    Dou-lhe só alguns exemplos: a) Em 2009 e por razões exclusivamente eleitorais, o Governo decidiu aumentar os funcionários públicos em 3% (apesar de uma inflação negativa, de condições económicas recessivas e de uma economia não competitiva (por os custos salariais terem evoluído sem ter em conta a evolução da produtividade), qualquer economista tinha obrigação de alertar (como muitos “desengajados” fizeram) que isso iria ser contraproducente e que se iria ter que se pagar com juros. O que fizeram os economistas “engajados”?! E agora qual é a consequência? Vão tirar 5% do rendimento aos funcionários públicos, mais parte da ADSE e da Caixa Geral de Aposentações, etc.. Ou seja, vão tirar mais do que lhes deram. Mas, entretanto, conseguiram os votos dos incautos (que agora o vão pagar com língua de palmo).
    b) Sobre os grandes projectos, os economistas (i.e. os verdadeiros economistas) sempre disseram que não estava em causa a sua bondade e que a sua escolha seria uma questão de preferência política; mas que escolher avançar com eles numa conjuntura economicamente adversa, com o País financeiramente esgotado, com crédito a escassear, com uma economia não competitiva (a precisar de investimento produtivo e incrementador da produtividade), iria ser altamente contraproducente, porque: i) iria consumir recursos financeiros que iriam faltar para o investimento produtivo; ii) dada a baixíssima eficiência desses investimentos, não iriam aumentar o potencial produtivo imediato, mas iriam aumentar o défice externo e constranger ainda mais as condições de funcionamento da economia, etc. O que fizeram os “economistas” engajados?! Assinaram dois manifestos políticos, de que qualquer verdadeiro cientista se envergonharia, a incentivar a aposta, iludindo todas as consequências cientificamente comprováveis. O resultado está à vista e vamos te que o pagar com língua de palmo!!!
    Quanto à importância da margens, tem toda a razão. A democracia prática - isto é, a democracia eleitoral - assenta praticamente toda na importância das margens - que decidem marginalmente os resultados eleitorais - e na desconsideração do core da sociedade. É uma das perversões da Democracia.
    Se assim não fosse, não teríamos andado a discutir casamentos gays e outras “causas fracturantes”, enquanto à nossa frente se elevava o maior tsunami económico e financeiro da nossa história e que vai arrasar muito do core da sociedade.
    É por isso mesmo que um pouco mais de razão e um pouco menos de fé, da parte de muita gente honesta que se tornou cúmplice do descalabro em que estamos metidos, teria sido muito útil para o core da nossa sociedade.
    Eu sei que é muito tentador tirar ilações políticas do que digo acima, mas, por favor, não siga essa via. É-me positivamente indiferente quem governa - dentro dos que partilham o quadro essencial dos valores da democracia liberal - desde que governe razoavelmente bem e com sentido do bem comum.
    Por fim e sobre a questão da ética. Isso daria oportunidade para um texto muito mais longo, do que um breve comentário. Mas, sinteticamente, pode ser muito ilusório, e perigoso, querermos basear um programa de governação num “manifesto” ético. Tanto mais que a história prova que nunca houve nada de mais terrível do que os governos de “santos”. O que uma Democracia republicana deve assegurar, como princípio fundamental da governação, são instituições que limitem seriamente as possibilidades de estragos por parte de governantes mal formados ou mal intencionados. E a exigência destas instituições (que impediriam, por exemplo, que se mentisse sobre a verdadeira situação das finanças públicas) deveria ser a principal exigência dos democratas empenhados numa sociedade boa.
    Com amizade.
  3. ricardo saramagoa 02 Out 2010 as 19:42
    Caro VB
    ” E aqui também não há boa nem má economia: há “economia” certa ou errada. E é precisamente neste campo que muitos que frequentaram os cursos de Economia - alguns mesmo doutorados (e catedráticos) em Vulgaridades Económicas - não aprenderam nada. E/ou então são intelectualmente desonestos.
    Muito Bem!!!!
  4. causavossaa 03 Out 2010 as 13:00
    Caro VB
    Na introdução aos seus princípios de economia política César das Neves dedica-os “À minha e nossa mãe, a Imaculada Conceição, rainha de Portugal há 350 anos”. Uma questão de fé, portanto! Curiosa e estranhamente, e sendo um ponto de vista apenas a vista de um ponto, concordo consigo quase integralmente, independentemente da sua fé inabalável na positividade da ciência económica!
    A ciência económica, parafraseando CN, parte do pressuposto da racionalidade dos agentes e do equilíbrio dos sistemas. A utilização destes princípios permite a obtenção de teorias simples, plausíveis.
    Afinal todos concordamos que L=R-D e podíamos, e devíamos, adoptar esta igualdade adsituação - evitaríamos pelo menos o cancro de Portugal: o eterno défice público que mata a economia. Mas as teorias simples dão apenas possibilidades de resposta. Lembra CN sobre Marshall: “as leis da economia devem ser comparadas com as leis das marés, e não com as leis simples e exactas da gravitação. Pois as acções dos homens são tão variadas e incertas que a melhor afirmação de tendências, que podemos fazer numa ciência da conduta humana, deve ser inexacta e defeituosa”. Acrescenta CN o valor ético das leis económicas para contrapor a mão invisível de Adam Smith, o pai da Economia fascinado com a ordenação automática do sistema.
    O exemplo do autocarro de CN, que invoca a eficiência do carácter simplista da solução económica, atem - se entretanto à colocação assimétrica das portas do autocarro, ao comportamento correcto das pessoas na confrontação com a distorção dos incentivos.
    A complexidade do sistema exige, assim, três instrumentos essenciais na óptica de CN - que é a vista de um ponto - tradição, autoridade, mercado. Na miscigenação dos princípios fundamentais da economia, a racionalidade e o equilíbrio, e as formas do enfrentamento dos problemas económicos - T.A.M.
    Concordo também com a sua afirmação dos governos de santos em mundo de pecadores. Não concordo já com a sua fé nas instituições reguladoras, pois essas já moram, viciosas ou viciadas ou tementes, tão pecadoras como as demais. E é por isso que penso que à excepção de umas igualdades e de umas evidências assertivas, a economia é uma espécie de seiva contaminada pela massa dos homens - a que chamo pouco rigorosamente, ética, e esse é o drama dos nossos tempos: a renegação da tábua de Moisés em detrimento da má percepção da utilidade - valor de cada coisa.
    Assim e porque não há uma má e uma boa economia, nem a economia é uma aritmética de soma certa, mas um tabuleiro onde se alimentam utilidades, o mais certo era termos o homem perfeito, justo, humilde, trabalhador, desprendido… para não termos de fazer da economia, essa seiva incerta, com laivos de racionalidade, política!
    Duplico a amizade,
    porque ela se cimenta nos homens e verdadeiros democratas, e humanistas, espero, de boas intenções.
  5. VBa 03 Out 2010 as 13:45
    Meu caro Causavossa,
    A minha fé na economia positiva é menos inabalável do que pode parecer do meu último comentário. Mas há duas ou três coisas que, pelo menos por enquanto, tenho como certas. Uma, é que a Economia, não sendo uma ciência exacta, é, pelo menos, uma “ciência aproximada”. E, nesse sentido, é mais útil do que a sua ausência, pois que o que explica ou prediz é, em geral, mais útil e acertado do que a incerteza absoluta que resultaria da sua ausência.
    Outra, é que a razão por que a Economia é inexacta é porque o Homem é um ser livre (por outras palavras, a Economia seria tão mais exacta, quanto menos livre, e mais mecanicista, o homem fosse). Os resultados da Economia são o resultado de muitos milhões de interacções entre muitos milhões de homens e agrupamentos sociais, mais ou menos livres, mas o suficiente para que as suas decisões não possam ser integralmente previsíveis, o que afectará necessariamente o seu resultado global.
    Outra, é que, sempre que se quer intervir na economia, o número de variáveis que não se controlam é muito maior (muitíssimo, geralmente) do que as que se controlam, pelo que os resultados alcançados tendem a ser mais dominados por “unintended consequences” do que pelos objectivos desejados.
    Outra ainda, é que a ética (ou a moralidade) está fora da Economia (e não dentro), e que o maior ou menor sucesso das teorias económicas depende da sua maior ou menor incorporação da moralidade social dominante no universo social contemplado (porque é esta que influencia decisivamente os comportamentos dos homens, com reflexos económicos).
    Enfim, matérias muito complexas para tratar num comentário ou mesmo num post. Tenho sobre elas cerca de 10 mil palavras escritas num texto integrado, mas que ainda precisa de outras tantas para poder ver a luz da publicação…
    Todavia e tendo dito isto, não tenho dúvidas de que a Economia já dispõe de um conjunto de certezas razoáveis e aproximadas, suficiente para poder fazer algumas previsões fidedignas. Algumas delas, nem precisam de muito mais do que a compreensão de certas identidades que definem a restrição dos recursos disponíveis para a satisfação das ilimitadas necessidades ou desejos. E era basicamente sobre o papel dessas que me referia no último comentário. E que todos os que se intitulam de economistas têm obrigação de saber. Tanto mais que, para muitas delas, basta a intuição de uma boa dona de casa para as perceber. E que, portanto, tentar ignorá-las ou desvalorizá-las é, ou ignorância pura e dura, ou desonestidade intelectual.
    E um dos conhecimentos básicos que qualquer economista mediano tem obrigação de saber é a distinção entre as restrições aplicáveis a uma economia (predominantemente) fechada e a uma economia (predominantemente) aberta. Mas, acredite, há muitos catedráticos de Vulgaridades Económicas que não sabem! Mas são catedráticos…
  6. causavossaa 03 Out 2010 as 16:26
    Caro VB
    Concordo na íntegra com este seu último post e subscrevia-o na totalidade.
    Veja lá, caro VB, como o diálogo tem este estranho condão de chamar à colação a relatividade das coisas e de pôr a nú a aproximação às diferenças.
    Não leve a mal algum contraditório, até porque não me sobram dúvidas sobre o empenho de alguns meus compatriotas para a construção de um país melhor… para todos! O segredo da receita parece estar na dose! Como muito bem diz e não sendo um indefectível de Lula, a realidade é que Lula mostrou a intuição de uma boa dona de casa da classe média. Uns usam mais condimentos económicos para gerar um melhor cidadão; outros acham que melhores cidadãos apaladarão uma melhor economia!
    Um abraço
  7. VBa 03 Out 2010 as 16:39
    Caro Causavossa,
    Não levo nada a mal, antes pelo contrário. O contraditório honestamente motivado é uma das melhores formas de aprendermos e de corrigir erros. Eu costumo até, em muitas discussões, quando o meu “oponente” tem posições semelhantes às minhas, fazer a argumentação contrária, seja para aprender melhores respostas, seja, se tiver que ser o caso, para me aperceber que as respostas de que estamos convencidos ser certas, estão afinal erradas.
    Quanto ao Lula, isso é de um outro capítulo, a Política. Esta não tem necessariamente que seguir as recomendações da Economia (ciência), precisamente porque lida com funções de preferência social e estas são necessariamente subjectivas e dependem dos grupos sociais que o poder pretende satisfazer prioritariamente. Tem é que assumir as consequências se conduzir a maus resultados, sobretudo se estes tiverem sido avisados atempadamente.
    Lula parece ter conseguido um bom equilíbrio. Mas também há que não esquecer o terreno cuidadosamente preparado que lhe deixou o FHC.
    PS: Uma correcção aos meus comentários anteriores. Quando referia “Vulgaridades Económicas” deveria dizer com mais propriedade, “Esoterismos Económicos”. Parece-me mais apropriado.

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