segunda-feira, 31 de maio de 2010

DIREITOS CULTURAIS E CIDADANIA NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO

No princípio era o verbo, no fim a globalização, e a globalização o nomadismo do homem do mundo moderno. Glosar a Bíblia pode parecer menos próprio, mas ao homem consciente importa não ser ethnically blind, sendo-nos franqueado visualizarmos e apercebermo-nos da multinacionalidade e do multiculturalismo que nos tomou o espaço. Mia Couto, escritor cuja cidadania confunde-se e rima com Lusofonia, pôs na boca do marido de Carlota Gentina, prima distante e plebeia da nossa Joaquina: “Eu somos tristes…quando conto a minha história, me misturo, mulato não de raças, mas de existências” (Vozes Anoitecidas, Mia Couto, 2006). E é nessa voz que me quero situar, consciente da interdependência e da assimetria de poder que desliza tantas vezes da comunicação intercultural.
Ser cidadão, “alma e lugar em mim”, é cada vez menos um constrangimento da nossa condição de nasciturnos num dado lugar, detentores de direitos de cidadania, esses direitos de primeira geração. Já Pessoa, em “desassossego”, se tinha “da lei da Pátria libertado” quando exclamou: a minha pátria é a língua Portuguesa. O seu céu, limitado, já extravasava “por todos os lados” por via de um intenso “caminheiro” criativo.
Fazendo uma rápida incursão em forward, os direitos culturais são, assim, na cidadania universal, uma espécie de filhos da globalização e do homem espalhado como verbo e afirmam-se como direitos de última geração, uma espécie de direito a afirmar os seus direitos. Para trás já ficam os direitos humanos e políticos, que podem estrangular o homem, e os sociais. Os direitos foram reconduzidos agora à própria consciência individual, descobrindo céus menos plúmbeos, como se fogs Londrinos diluindo pelo planisfério. E Touraine já se atreve a afirmar: “ O direito a uma vida religiosa não é só o direito de um grupo a praticar a sua religião; é também … o direito de cada indivíduo a mudar de religião…” (Os Direitos Culturais, Touraine, 2005). O céu à medida do global, trás, assim, um direito à individualidade, entre aquilo que Touraine dualiza como, o universalismo dos direitos e o particularismo dos interesses. Entre a hipótese multiculturalista e a homogeneidade cultural, há um mundo que passa pelo esmagamento do “Outro”, pela mestiçagem cultural, pelas relações interculturais. A explosão dos contraditórios não é, modesta óptica de eterno estudante – especulador – sonhador, mais que o despontar da consciência individual no seio da multidão. Quanto mais conhecemos as nossas semelhanças, mais afirmamos o particularismo como antónimo do colectivismo ou do comunitarismo. Touraine diz: “as reivindicações minoritárias expõem-nos a grandes perigos, o próprio princípio do viver juntos”. Mas também, bem, observa a conjugação entre “a unificação e individualização da pessoa humana face aos constrangimentos, o fim da sua luta e o que lhe dá força” e “O que cada um de nós reclama, e sobretudo os mais dominados e os mais desfavorecidos, é ser respeitado, não ser humilhado… ser escutado – e mesmo entendido.” Dificuldade reconhecida, neste processo digestivo de identidades. No pressuposto de uma guerra de culturas, do medo que vem de fora, da rejeição de uma cultura ou uma nacionalidade, de um comunitarismo reaccional. Mesmo que sejamos todos, mais ou menos mestiços!
Com os direitos culturais há uma verdadeira opção omnívora do exercício e da assunção dos direitos. O campo temático apresenta-se vasto atendendo à multiplicidade da dimensão humana: o género, a raça, a etnia, a religião, as faixas etárias, as nacionalidades. Penetra também em modos de vida, em expressões artísticas, formas de comunicação, desporto, lazer, concepções de tempo e espaço, hábitos, comportamentos, valores… alcançada a cidadania reconhecem-se e realizam-se estes novos direitos. Os direitos deixaram de ser apenas “carne ou peixe”, soam concretos, alargam-se agora ao ser, ele próprio, à individualidade! Os direitos culturais, esses direitos que protegem por definição populações particulares, Touraine dixit, levam-nos finalmente a poder afirmar: somos finalmente “operários de nós próprios!” Os actores livres “flutuam” agora como os radicais livres, mas no interior da organização social, arrepanhando com ambas as mãos o direito à boa imagem e representatividade, em busca do reconhecimento, realização e do “graal” do “self-esteem.” A cidadania bate-se contra o comunitarismo. Estreita, quando rejeita o pluralismo cultural e distende, tornando-se aberta, quando compatibiliza a modernidade com a diversidade das histórias culturais.
Fazendo agulha para o PNUD , esse órgão da ONU “construtor” do IDH, mandatado para a promoção do desenvolvimento, e olhando para o relatório de 2004, titulado “a liberdade cultural num mundo diversificado”, apercebemo-nos de como estes direitos, de última geração, integrantes dos direitos humanos, direitos sexuais, dos deficientes, de género, … ainda são frágeis, e em construção, apesar de declarações - como a da Unesco - sobre a diversidade cultural. O direito à expressão do idioma materno, à educação de qualidade – de acordo com a identidade cultural – às práticas culturais, ao desfrute do progresso científico, à protecção dos interesses materiais de toda a produção científica, literária ou artística , ainda se quedam demasiadas vezes entre o liberalismo desigual e alguns comunitarismos obcecados pela identidade e homogeneidade, sem querer saber que comunitarismo e universalismo abstracto se completam e opõem. A modernidade mundo, a compatibilidade da modernidade com elementos sociais e culturais diferentes, e a pluralidade dos modos de modernização versus a expressão do multiculturalismo ainda aparecem apeados em muitas zonas mundo. Os direitos culturais ainda se jogam a várias velocidades, em “cidades” patriarcais, étnicas e “fundamentais”. O regresso ao divino, apontado por Adriano Moreira, desligado de combinações diversas, pode indicar degradação dos movimentos sociais e obsessão pela identidade.
Estendendo o rol, em crescendo, o Universalismo tem vindo a alargar o seu domínio a temáticas como os pactos entre as nações versus a pobreza humana, a liberdade cultural num mundo diversificado, a temática da cooperação nos domínios da ajuda, comércio e segurança num mundo desigual, as questões do poder, da pobreza e a crise mundial da água, a solidariedade num mundo dividido e o combate global às alterações climáticas, a ultrapassagem das barreiras, a mobilidade, e o desenvolvimento humano. A cidadania na era da globalização, já nos transporta do lugar, à aldeia, ao burgo, à cidadania, ao mundo. Alarga-se assim a domínios ainda antes impensados. O homem torna-se uno, expressão cultural completa, mas a árvore comum lança à terra múltiplos ramos que os distingue na unidade. O viver localmente e globalmente dá-nos a noção de uma ética que não é geográfica, mas humana, uniformizando um ius cogens internacional que nos une na diversidade. A unidade na diversidade do projecto Europeu - fórmula de sucesso, mesmo sujeita aos actuais revezes e dores de crescimento - só cambaleia na ignorância, medo ou no engano da superioridade ou inferioridade das almas. O desenvolvimento de múltiplas identidades dos actores faz cada vez mais de nós, homónimos em cada lugar. Os direitos culturais reflectem assim o burilar de uma cidadania global, que congrega e “homogeneíza”. Há um certo determinismo nos direitos culturais, como extensão das diferenças de identidade, e um caminho feito de revezes para uns e outros, mas a inevitabilidade da maré acoberta-se no facto do conhecimento dos outros. Quanto mais conhecemos os outros, mais nos conhecemos a nós próprios. Se para alguma coisa Sócrates serviu é - ou foi - o aforismo do “conhece-te a ti mesmo”, passível de ser estendido ao conheçamo-nos a todos, que inunda a cidadania na era global. Como diz, não um “vulgar” Sócrates, mas um conhecido jornalista Português, “há nas pessoas uma dimensão colectiva” (Cabral, 02-12-2006).
Frase intensa, muito Lapalaciana, mas perene, de Maria da Glória Gohn, no seu (Cidadania e Direitos Culturais, Gohn, 2005, p.18): “O consenso vai sendo obtido a partir do dissenso”. O jogo das diferenças, o tensionamento contínuo, vai de mão dada com as “cidadanias”, que são cada vez mais completas e “sujeitas de capacidade cultural de exercício”, neste nosso mundo global.
Na cidade global, os contrários medem-se pela normalização dos conteúdos e pelas especificidades dos actores. Na cidade global os Direitos desfiam-se e alargam-se à multitude dos actores. A cidade global será definitivamente, esperamos, o “coio” dos Direitos para todos.

Bibliografia
ANDRÉ, J. M. (2006). Obtido de Identidades. multiculturalismo e globalização: http://www.apfilosofia.org/documentos/pdf/JMAndreIdentidade%28s%29_Multiculturalismo.pdf
CABRAL, F. S. (02-12-2006). Tradição cultural e liberdade pessoal. Diário de Notícias .
CASTELLS, M. (2003). Capítulo 1: Paraísos comunais. In M. Castells, O Poder da Identidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
COUTO, M. (2006). Vozes Anoitecidas. Lisboa: Caminho.
Desenvolvimento, P.-P. N. (2004). Relatório do Desenvolvimento Humano. Obtido de http://hdr.undp.org/en/media/hdr04_po_complete.pdf
FORTUNATO, C., & SILVA, A. S. (2001). Cap. 11: A cidade do lado da cultura:espacialidades sociais e modalidades de intermediação cultural. In S. S. (org.), Globalização: fatalidade ou utopia? Afrontamento.
GOHN, M. D. (2005). Cidadania e Direitos Culturais. Obtido de http://www.google.pt/webhp?client=firefox-a&rls=org.mozilla:pt-PT:official&channel=s&hl=pt-PT&btnG=Pesquisa+do+Google#hl=pt-PT&client=firefox-a&channel=s&rls=org.mozilla%3Apt-PT%3Aofficial&q=cidadania+e+direitos+culturais+gloria&meta=&aq=f&aqi=&aql=&oq=ci
MENDES, J. M. (2001). Capítulo 13. O desafio das Identidades . In B. Sousa Santos, Globalização.Fatalidade ou Utopia? Porto: Afrontamemto.
TOURAINE, A. (2005). Capítulo 2: Os Direitos Culturais. In Um Novo Paradigma. Para compreender o mundo de hoje. Lisboa: Instituto Piaget.
UNESCO. (2002). Programa Universal sobre a Diversidade Cultural. Obtido de http://www.unesco.pt/cgi-bin/cultura/temas/cul_tema.php?t=17
WIKIPÉDIA. (s.d.). PNUD-Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Obtido de Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Programa_das_Na%C3%A7%C3%B5es_Unidas_para_o_Desenvolvimento

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